quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Dois dias, uma noite: a invejável liberdade dos pássaros


Em um dado momento do filme Dois dias, uma noite, a protagonista Sandra almeja uma liberdade que não tem. “Queria estar no lugar deles”, ela diz insatisfeita. “Deles quem?”, pergunta o marido sem entender. “Dos pássaros”, responde sem pestanejar. Liberdade, igualdade e fraternidade foram os lemas basilares da Revolução Francesa que culminou com a declaração dos direitos civis dos homens. No entanto, no mundo contemporâneo, em plena era da valorização do consumo exacerbado e da competitividade extremada, nada mais distante da realidade do que a tríade humanista francesa.

Os irmãos belgas Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne nos lançam no mundo particular de Sandra, interpretada com delicadeza, melancolia e fragilidade por Marion Cottillard (Piaf - Um hino ao amor, 2007), uma operária que, após uma decisão interna de sua empresa, descobre que perderá o emprego. Apoiada por uma colega de trabalho, ela convence seu chefe a realizar uma nova eleição na qual será decidido o seu futuro. A partir de então, durante um fim de semana, a trabalhadora vai à casa de 16 funcionários para tentar dissuadi-los de receber um bônus de 1.000 euros a favor de sua permanência no cargo. É preciso observar que a luta da protagonista – com viés trágico de uma Antígona de Sófocles – não é só pela manutenção de sua dignidade, mas também pela conservação de sua saúde mental abalada por uma forte depressão.

O roteiro escrito pelos próprios irmãos cineastas é simples, porém, valoroso em suas intenções. A tentativa de demover os companheiros de labuta do recebimento do pagamento extra chega a ser cansativa para quem assiste devido à repetição do texto de convencimento. Entretanto, a ideia é exatamente essa, de que sintamos um pouco da circunstância extenuante pelo qual a moça está passando. Nada nos filmes dos Dardenne é por acaso. Sejamos atentos, por exemplo, às músicas que são ouvidas pelos personagens, sempre dentro de um automóvel em movimento. No interior do veículo, a sensação de claustrofobia parece aumentar, mesmo que as pessoas estejam procurando, por meio das melodias, desanuviar o peso de suas vidas. As próprias letras das canções são traduções do que eles estão sentindo, seja na voz de Petula Clark, que lamenta o mundo insensato em La nuit n`en finit plus, ou na voz de Van Morrison, que grita o refrão de Gloria numa alusão à mulher que supera obstáculos e não apenas em relação a um nome feminino. O automóvel, como símbolo máximo de uma sociedade de consumo, surge, aqui, como metáfora. Uma cápsula capitalista que nos aprisiona e sufoca sem ao menos nos darmos conta. Como contraponto à realidade sufocante de Sandra, ao fundo de diversas cenas, pássaros cantam alegremente, insetos murmuram ruidosamente e vozes esparsas de desconhecidos se espraiam pelo ar.

Nas entrelinhas da narrativa do longa-metragem há questionamentos profundos: como ser livre se necessitamos de um trabalho que nos pague um salário digno para que tenhamos, não apenas o básico da subsistência, mas qualidade de vida também? Como ser livre se dependemos o tempo todo da boa vontade do outro ou - muito além disso - de remédios tarja preta para podermos acordar, dormir e sorrir porque as pressões sociais, na maioria das vezes, são insuportáveis? Como ser livre se vivemos cercados pelo medo? Como podemos pensar em igualdade se para uns terem, outros precisam perder? Como ser fraterno se, no mundo da competição acirrada, o individualismo é a voz mais ressoante? Todas essas questões vêm à tona na medida em que a protagonista encontra seus colegas, e desses encontros surgem as emoções mais contraditórias, tais como, a culpa, o medo, a raiva, o desespero, a vaidade e a dúvida.

Muito mais que fazer um retrato da Europa atual na qual o desemprego é uma realidade tanto quanto é em países ditos emergentes como o Brasil, os cineastas auscultam o comportamento dos homens que, indubitavelmente, vêm lutando muito mais pela conquista de bens materiais do que por valores humanos. Não chegam a seguir a linha de pensamento de um Ingmar Bergman, cineasta sueco que, certa vez, disse não acreditar mais em revoluções. O que, de fato, os Dardenne fazem é nos mostrar que a tal revolução que tanto esperamos que aconteça no mundo, talvez, deva começar em nós, primeiramente, a partir de pequenos enfrentamentos contra a degradação humana. Pode parecer piegas, mas esta é uma importantíssima reflexão a ser engendrada por todos nós de maneira conscienciosa, ainda mais em tempos tão confusos como os que estamos vivendo, de passeatas esvaziadas de sentido ou com propósitos bastante inumanos. Nessa perspectiva perpetrada pelos diretores, é importante analisar o figurino que veste a protagonista. No primeiro dia de sua jornada, ela veste uma blusa rosa e, no segundo dia, uma blusa alaranjada. É como se a própria roupa, na tonalidade reforçada, refletisse uma aproximação maior com o vermelho que na bandeira francesa representa a fraternidade. Na segunda blusa há, estampados, pequenos laços interligados que, aos olhos menos atentos, podem passar despercebidos. Eu não disse que na obra dos Dardenne nada era por acaso?

Dois dias, uma noite, apesar dos contornos melancólicos, é um filme otimista de certa forma, pois chama a nossa atenção para pensarmos sobre nossas atitudes como indivíduos e sobre o mundo que nos cerca. É um grito de esperança, que nos impulsiona para a ação no sentido de não deixarmos nossas utopias de lado em sonhos de papel ou lemas de bandeiras. Faz-se necessário, de forma salutar e imperiosa, murmurar nosso protesto tímido à sombra do mundo errado, como diria Carlos Drummond de Andrade em seu poema Consolo na praia. Porque o movimento que tem ganhado mais força nos últimos tempos, com muita clareza, é o da desumanização. Quando vemos memes circulando nas redes sociais em que a sequência Liberté, Égalité, Fraternité é acrescida de um Beyoncé - cantora norte-americana, ícone de valores de uma cultura de massa -, muito mais que nos fazer rir, deveria nos provocar um estranhamento reflexivo. É inegável que algo está muito errado e que o mundo está resvalando para caminhos bastante obscuros, disfarçados sob a égide do sucesso, da felicidade, da beleza e do poder. Todavia, segundo a narrativa dardenniana, precisamos continuar acreditando no homem, nas utopias e no próximo, para podermos seguir adiante com uma ideia melhor de futuro. É preciso lutar com as armas que se têm - e no filme, o diálogo é a grande arma de Sandra (e me pergunto se não deveria ser a de todos nós?) - para que um dia, quiçá, possamos caminhar todos juntos com uma felicidade mais genuína estampada no rosto e sem precisar invejar a liberdade dos pássaros.


*Texto escrito para publicação na revista independente Ácido Plural, nº 3. 21 de novembro de 2015. Para conhecer, acesse o link abaixo:

http://acidoplural.wix.com/revista#!edicoes-anteriores/c1bf2

*Filme disponível em dvd.

domingo, 1 de novembro de 2015

Tubarão: uma aula de cinema escapista


Passados 40 anos de seu lançamento, Tubarão, além de ser considerado um clássico do cinema de entretenimento, é também uma das obras-primas do diretor Steven Spielberg. À época, com apenas 27 anos, o cineasta ainda não era o nome tão celebrado da indústria cinematográfica como é hoje e, por isso, dirigiu o filme com muitas dificuldades e orçamento baixo. São famosas as histórias de bastidores sobre os tubarões mecânicos feitos para o filme que nunca funcionavam a contento, sempre deixando a produção na mão na maior parte das cenas realizadas. No entanto, Spielberg contornou as adversidades das filmagens com muita criatividade como, por exemplo, no uso da câmera subjetiva que revelava a presença do predador em diversos momentos sem que houvesse a necessidade de mostrá-lo. Assim, a ação deu lugar ao suspense, o que acabou gerando uma atmosfera de perigo muito maior. Numa tela grande de cinema, com imagem restaurada e som de qualidade, as cenas se potencializam e a experiência cinéfila torna-se bastante interessante por nos dar um pouco da sensação que as plateias de 1975 sentiram numa sala escura.

É impressionante observar que, apesar do tempo decorrido, Tubarão ainda é muito bom, e revela muito sobre o fazer cinematográfico. Spielberg nos dá uma aula de cinema com seu longa-metragem, provando que, às vezes, a falta de grana pode ser o chamariz da criatividade. A despeito de ser um evidente entretenimento escapista, que se aproveitou bastante do sucesso que o livro homônimo de Peter Benchley fazia nas livrarias da época, não há como negar as qualidades da produção que conta a história de um balneário dos Estados Unidos que se vê às voltas com um ataque de tubarão em uma de suas praias. Na iminência do feriado de 4 julho, o prefeito da cidade só está interessado em encher a cidade de turistas e, por isso, ignora a potencial gravidade do perigo. Compondo os personagens centrais, há um policial com fobia do mar por causa de um trauma do passado, um oceanógrafo que descobre estar diante de um monstro de proporções nunca antes vistas e um pescador rude disposto a caçar o animal em troca de dinheiro. Considerado o primeiro grande blockbuster da história do cinema americano, o longa-metragem ultrapassou, pela primeira vez, a cifra de mais de 100 milhões de dólares nas bilheterias americanas. No Brasil, deteve a primeira posição na lista dos filmes com o maior números de espectadores do país até o ano de 1998, quando Titanic chegou aos cinemas desbancando o seu posto. Também foi o responsável por inaugurar o formato do calendário de lançamentos de filmes de Hollywood, reservando às produções de grande porte (leia-se: marketing agressivo) a temporada do verão americano.

Uma revisitação ao filme nos revela questões peculiares da produção como a sua famosa trilha-sonora composta por John Williams, que entrou para a história das composições musicais de suspense/horror - os acordes anunciando a chegada do tubarão próximo às vitimas se mantém intacta no imaginário dos cinéfilos. Vencedora do Oscar em 1976, o filme também recebeu os prêmios de montagem e som, e perdeu o de melhor filme para Um estranho no ninhoNo entanto, ouvindo o restante da trilha instrumental, nossos ouvidos de hoje não ouvem mais um som eletrizante e sim algo que beira ao cômico. Não foi à toa que, ao escrever sobre o filme na comemoração de seu quadragésimo aniversário, alguns críticos tenham dito que, com o olhar de hoje, Tubarão mais pareça uma comédia do que um filme de terror. Não estão enganados quando dizem isso, mas não é tão exagerado assim. O suspense ainda se mantém em muitas sequências como na bela cena de abertura na qual uma mulher entra na praia e se banha, completamente nua, sob a luz crepuscular do sol, sofrendo, logo em seguida, o primeiro ataque que desencadeia toda a narrativa. Ou na cena em que crianças brincam felizes na praia e o alarido das brincadeiras já nos deixam inquietos com a possibilidade de um ataque surpresa. É inegável, tudo é muito bem conduzido. Mas, na minha opinião, a parte mais problemática do filme é o final quando os três personagens masculinos, o policial, o oceanógrafo e o pescador adentram o mar para liquidar a razão do pânico na ilha. As cenas surgem um pouco arrastadas e, muitas vezes, perdem sua tensão se transformando em mera pescaria de um peixe grande.

O grande deleite de assistir esta produção icônica do cinema norte-americano após quatro décadas, é perceber que, intencionalmente ou não, Spielberg fez um filme que refletiu (e ainda reflete) a estupidez humana. Não podemos deixar de perceber a burrice do prefeito que, imbuído de interesses comerciais, ignora os riscos à vida dos turistas. Também não podemos deixar de constatar a espetacularização da mídia que, ao invés de afastar o público da praia, só aumenta a curiosidade de todos, noticiando os acontecimentos como se fossem um grande programa televisivo. A própria postura dos frequentadores da ilha revela esse desejo de ver a tragédia alheia como um verdadeiro espetáculo. Observe como as pessoas reagem quando uma possível vítima é atacada, ao invés de se desesperarem, gritando para salvá-las, por exemplo, eles, acomodados na areia, simplesmente, pegam seus binóculos para assistir o ataque, como se estivessem diante de um grande show. 

Analisando a narrativa com atenção, podemos perceber que a tríade de protagonistas masculinos representa, cada um a seu modo, uma postura diante daquilo que ainda não compreendem. O policial Brody (Roy Scheider) representa o medo, o pesquisador dos oceanos, Hooper (Richard Dreyfuss), representa o conhecimento e o pescador Quint, a ignorância, guiada pela ganância no dinheiro. Sendo assim, o tubarão torna-se metáfora dos mistérios que envolvem a vida e que despertam no ser humano os mais variados comportamentos. De frente para o desconhecido, podemos ser ora medrosos, ora curiosos, mas também, bastante presunçosos. No livro escrito por Benchley, o oceanógrafo morre num ataque, no entanto, no filme, Spielberg preferiu mantê-lo vivo. Assim, apenas o pescador interesseiro e machista - diga-se de passagem - morre, fruto de sua própria petulância. A grande caçada final ao tubarão não pode deixar de ser percebida como um reflexo da extrema ignorância humana, e é engraçado notar que a trilha-sonora supracitada, ouvida hoje, com uma sonoridade mais aventureira, resvalando para o cômico, parece refletir essa insensatez do homem em sua relação com a natureza beirando, assim, ao risível. Diante do peixe cartilagionoso de mais de 6 metros e de mordida poderosa - por vezes fatal - o homem torna-se um ser medroso e ridículo. Ao final da projeção, não há como não indagar: quem estava errado nessa história? O homem que invade o território do tubarão ou o tubarão que apenas goza de seu habitat? A resposta não me parece tão complexa assim.

O tubarão mecânico

O filme foi reexibido na sessão Clássicos Cinemark nos dias 24, 25 e 28 de outubro de 2015.